Chamaram-nos às duas para o corredor de dentro. Uma imensidão de branco com portas fechadas e muitas cadeiras alinhadas. Olhei-a rapidamente. Grande, gorda, de farta cabeleira ruiva (que nem todas se habituam a exibir a careca). Cara conhecida do piso de cima. Bom aspecto, devo dizer. Nem pálida nem roxa. Nem olhos fundos. Nem baços de tortura. E pestanas das verdadeiras. Brincos, colar e pulseiras. Não esqueceu o risco a lápis negro no sobrolho, nem o batom vermelho nas linhas finas dos lábios. Naquele vazio todo, sentou-se ao meu lado. Óbvio. Só nós duas naquele mar branco com cheiro a éter. Suspiros desmaiados e um vaivém de mãos em dedos rechonchudos com muitos anéis a segurarem a mala que teimava em escorregar pelo colo. Suspirava muito. Quase sem parar. Espreitava-me entre cada suspirar. Arfavam-lhe os implantes. Meteu conversa para queimar a espera, pois claro...
Que ela estava ali por questões gravíssimas. Que sofria de um mal “do pior que há”. Que a agonia de quem quer que fosse nunca se compararia à sua própria agonia. Que o problema dela era dos maiores do mundo. Que eu não imaginava sequer e era melhor nem querer saber do “disto” que ela sofria. “Como se eu lhe tivesse perguntado alguma coisa…” Hum… “Conheço-a lá de cima.” Esticou-se na cadeira, agigantou-se de braços trancados sob as hipotéticas mamas e olhou-me num semi-cerrar de olhos cheios de desdém lá bem do alto do postiço encarnado. Desculpou-se por não se lembrar de mim, e continuou. Que eu era nova demais e não sabia nada disto, que ela andava nisto já para mais de 15 anos, que lhe foi na barriga e depois no peito.”Ou no peito 1º depois na barriga?!” E dos sítios por onde andou quando isto lhe aconteceu e da vida e do marido e dos filhos e que seguramente íamos todas morrer disto. Ela, caso mais grave que todas, 1º que todas. Inclinou sobre mim o postiço, segurou-me o braço indevido pelo cotovelo, fitou-me num olhar muito pequenino e disse-me baixinho, confidencial: -” Desculpe, eu não quero desanimar ninguém mas morremos disto, lhe digo. Eu então, ainda vou 1º que todas!” E suspirou outra vez…
”Sobrevivente há 15 anos e ainda se queixa?! Mas de que raio quer ela morrer?!”
O médico chamou e entrei antes dela. Que isto também tem inscrição e não me apeteceu ser simpática. O ECODOPLER disse que o coração trabalha nos níveis toleráveis. Era tudo o que queria saber. Nem a olhei quando saí, na pressa de chegar à rua.
- “Morra você disto se quiser! A mim, ainda não me apetece.!”- fui resmungando durante uns minutos.
Mena:
ResponderEliminarHá pessoas assim, mais do que devia haver.
São assim em tudo e sempre foram asssim.
São assim no que é bom... são assim no que é mau.
Não podem ajudar-se a si mesmas, nem ajudam os outros, e eu acredito que sejam muito infelizes, porque quem só pensa em si não vê mais nada à sua volta. O centro do mundo são elas... até porque estou convencida que afastarão toda a gente pelo cansaço que provocam.
Escreveste duma maneira que parece que a estou a ver... conheço o género.
Beijos
Maria
Mena
ResponderEliminarescreveu duma maneira tão real, que até arrepia.
gostei da maneira como deu a volta ao "texto".
bom fim de semana!
beij
Grande pinta. Muito bem contado um episódio, obviamente, real e que só revela o teu sentido de humor. Excelente ironia. Enquanto a mantiveres, ninguém te agarra.
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